Réquiem SP
- Isabella Luchi
- 21 de mar.
- 5 min de leitura
Eu fui ver o Réquiem SP e resolvi escrever. Eu não sou crítica, por favor, não espere uma análise profunda e técnica. Sou cantora e não entendo nada de balé, só entendo de ser humana. Entendo de sentir. Vou escrever sobre a minha experiência, para o público que, como eu, sente. Aviso: este texto contém spoilers.
Dia 20 de março de 2025. Começo pelo fim. O fim tem a ver com o começo, então falo de ambos. As cortinas subiram e os bailarinos estavam em fila, de frente para a plateia. Antes mesmo do Requiem de Ligeti começar, faziam movimentos repetitivos rápidos com o tórax: o peito afundava e voltava, afundava e voltava, afundava… É o movimento do choro, da respiração curta e alta. Ficaram nesta pulsação tempo suficiente para gerar curiosidade, desconforto e quiçá empatia. Por alguns segundos, desejei ver toda a plateia imitando aqueles corpos — eu sei que eu queria. Queria fazer parte daquela catarse anunciada. Assim que romperam a linha, partiram para uma série de outros movimentos recorrentes, cada grupo fazendo um. Eles iam mudando de uma estação para outra, como se vivessem um ciclo, um contraponto do luto. Esta sequência de movimentos apareceu uma segunda vez, na peça de Venetian Snares que fecha o programa, como uma reexposição de sonata que passa pelos temas já conhecidos, variando-os levemente e compactando suas ideias para anunciar que o fim está próximo.
O Requiem de Ligeti revela os aspectos mais sombrios e profundos de dor e agonia do luto, da perda. Correndo o risco de ser muito clichê, foi inevitável associar as passagens de baixo profundo com a solidão e o vazio que todo ser humano visita quando perde alguém que ama. Nem consegui escapar de ouvir os agudos extremos das sopranos como gritos de angústia, raiva e dor. Uma música extremamente difícil, tanto para coro, quanto solistas e orquestra: difícil como o luto. Dissonante como a “vida que segue” diante da morte.
Ao passo que a peça de Ligeti transcorria, o balé não parava um segundo, nem quando a música oferecia pausa. Isso me gerou tanta agonia! Queria ir lá e segurar um por um: “Para! Respira um pouco! Tudo bem você parar um pouco.” Será? Será que tudo bem parar? E a vida deixa? Eles sambaram enquanto choravam e a música não sugeria samba. Eu já não sabia se o choro era do luto, ou se choravam porque queriam parar para descansar e não conseguiam. Não podiam. Às vezes, a vida é isso.
Seguiram assim: incessantes. Até que caíram no chão, exaustos, e uma outra sessão começou. Movimentos em câmera lenta e isometrias em posições extremamente difíceis. Não dava mais para seguir a vida e ir chorando no caminho. Era o momento de suspender a realidade e sentir. Os bailarinos demonstraram um controle absurdo de seus corpos e um envolvimento dramático tocante. Doía em mim. Eu chorei em silêncio e gritei por dentro.
Pela primeira vez, eu vi seres inanimados participarem da montagem quase como personagens: o mecanismo de suporte da câmera que desceu das varas e a cortina do teatro foram integradas à cena de tal forma que fiquei me perguntando quanto estão recebendo de cachê. A videografia em tempo real, recurso que tem sido muito utilizado nas produções, pela primeira vez me deixou satisfeita. Sempre tive a sensação de que as câmeras no palco e as projeções se tornavam um empecilho, ou deixavam as pessoas desconfortáveis, ou distraíam o público e os artistas do que realmente importava. Desta vez, não. A projeção da transcrição fonética ajudou na conexão com o coro e o texto, e a transmissão em tempo real deu destaque ao que pedia destaque, reforçou a narrativa e enriqueceu a participação das solistas: tanto das cantoras, como da bailarina. Aliás, todas as três me encantaram.
Gabriela Geluda me impactou com a precisão vocal com que articulava trechos dificílimos e sobreagudos. Laiana Oliveira me fez grudar olhos e ouvidos com a sustentação dramática de sua performance e me surpreendia a cada momento por sua habilidade de explorar timbres e passear entre emissões com e senza vibrato sem perda alguma de qualidade vocal. E Bill Valkyrie? Minha nossa! Arrancou alguns gritos da plateia em meio a performance. Eu quis gritar também, confesso, mas me contive. Era como se ela, ao contrair e liberar coordenadamente micro-partes do seu corpo, fosse conduzindo um fluxo de energia em si mesma e em quem assistia. Houve um momento em que ela terminou num grito mudo, daqueles que nos fazem abrir bem a boca e contrair toda a face sem emitir som algum, sabem? Aquele grito que se arma por fora, mas se grita por dentro. Aquilo mexeu comigo, porque eu já dei vários desses em casa. Vê-lo assim, no palco…eu me senti emocionada. E exposta.
Ah! Eu ainda não falei das gotas d’água caindo em padrões rítmicos! Elas perpassam intervalos do réquiem e protagonizam o interlúdio junto ao contrabaixo, que foi tocado com muita expressividade por Vinicius Frate. O impacto das gotas d’água em mim foi crescente. Primeiro elas falaram com meu coração, depois com minhas lágrimas. O efeito foi estético, dramático e sonoro.
Ao fim do Ligeti, houve um interlúdio com troca de cenário e um cronômetro projetado. Eu confesso que tive ansiedade neste momento: “termina logo, senão a bomba vai explodir.” Acho que vi muitos filmes hollywoodianos na vida. Enfim…o preto deu lugar ao branco. O fosso da orquestra se ergueu. Aqui, o espetáculo me perdeu: um show de moto. Não entendi. Mas, nem tudo se entende na vida! Talvez fosse um feed que te distrai do dia, um meme que um amigo manda, um vídeo empolgante que te tira do sofrimento por alguns segundos. Talvez por isso a moto. Talvez, não. Eu, que tenho mania de procurar sentido nas coisas, quando não encontro, fico frustrada. Então decidi atribuir um sentido, para o meu próprio bem: a moto foi um TikTok que passou. Depois, o luto seguiu sendo vivido. Não tem como ser mais contemporâneo que isso.
E o fim? Surgiu um vídeo de uma mulher falando de seu estado de não alegria. A tela com a transcrição fonética de suas palavras foi “bugando” e os bailarinos também. Eles caíam sentados, um a um, seus corpos em movimentos circulares lentos. Enquanto eu torcia para meu cérebro não ficar epilético com os efeitos das luzes e a crescente agonia da música, eu apreciava aquele momento de chegada da exaustão. Eu também torcia que aquilo tudo acabasse logo. Quem já se permitiu viver suas dores e chorar de soluçar com toda força, sabe o que é o momento em que as lágrimas cessam e a mente silencia. É um estado meditativo que nasce da catarse, da entrega total à realidade do que se é e do que se sente. Eu chorei de novo. E abri a minha boca num grito mudo, como antes a Bill fez. Acho que ninguém me viu, porque quem poderia tirar os olhos do palco?
Toda a montagem nos conduz pelas dores da perda de uma maneira tão humana, ao mesmo tempo sensível e bruta, que não encontro palavras para descrever. Acho que já usei palavras demais — todas as que tinha — justamente por não ter nenhuma que se prestasse a explicar o que foi assistir ao Réquiem SP. Alejandro Ahmed conseguiu fazer o que muitos diretores têm tentado. Não houve boas ideias que não se desenvolveram, nem tentativas nesta produção; houve êxito. Minha mais profunda admiração por todos os envolvidos.
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